COVID: O plano para o rebanho

Cristian Menna
11 min readMar 29, 2021

Há quem diga que o governo federal brasileiro optou por não tomar qualquer atitude diante da pandemia de COVID-19, mas eu vou te mostrar no texto a seguir que o governo federal fez sim, muita coisa, diante desta tragédia.

Temas abordados: história da saúde no Brasil, iniciativa pública versus iniciativa privada, SUS, COVID-19, corrupção, imunidade de rebanho por contágio, genocídio e crimes contra a humanidade.

Mapa do brasil mostrando colapso sanitário geral.

O ano é 1900, a cidade do Rio de Janeiro, assim como tantas outras, sucumbia diante das epidemias de febre amarela, cólera, varíola, malária e peste bubônica, navios de carga já não podiam mais aportar aqui por medo de que as infecções se espalhassem pelo mundo (ver referências 1, 2 e 3, daqui por diante, ref-1, ref-2 e ref-3 como as demais).

Assim começa a jornada do Brasil rumo a ser o país com um dos melhores sistemas públicos de saúde de todo o planeta e é por ela que devemos começar para entender quais foram as ações do governo federal brasileiro, sob comando do presidente Jair Messias Bolsonaro, diante da pandemia de COVID-19.

Saúde Pública

Hoje chamada de saúde coletiva, em 1900, a saúde no país era garantida para toda a população apenas na forma de caridade em hospitais filantrópicos da igreja ou para trabalhadores de carteira assinada através das empresas. Mas o rumo desta história muda completamente com a assunção, como diretor geral da saúde, do sanitarista Oswaldo Cruz e com suas medidas sanitárias e de vacinação (ref-1, ref-2, ref-3).

De lá para cá, além de enfrentar greves, revoltas, novas pandemias, tentativas de golpe militar e ditaduras violentas, o Brasil e a saúde pública enfrentaram uma série de estratégias de desvio do dinheiro público para a iniciativa privada: foi assim com o investimento dos fundos das IAPs na industrialização do país nos anos 1930, foi assim com as construções superfaturadas feitas com os fundos do INPS nos anos 1960 e foi assim com o sucateamento e eventual repasse de instalações médicas construídas pelo SINPAS para a iniciativa privada nos anos 1970 (ref-1).

Mas houve resistência.

Já na década de 1960, movimentos populares discutiam e exigiam do governo do Brasil, que assumisse responsabilidade sobre a saúde pública. Na década de 1970, tais movimentos conquistaram participação nas tomadas de decisão do país sobre saúde através de conselhos populares e atenção básica a nível municipal (ref-1).

É no ano de 1986, na Oitava Conferência Nacional de Saúde, aberta à população, que a ideia do que viria a ser um dos maiores sistemas públicos de saúde no mundo toma forma e se consolida para finalmente virar lei e garantir, na constituição de 1988, que a saúde fosse um direito de todos e um dever do Estado (ref-1, ref-4).

SUS

Com os maiores programas de vacinação e transplante de órgãos do mundo, oferecendo vigilância sanitária e tratamento gratuito para todos os brasileiros, o Sistema Único de Saúde é objeto de estudo e admiração de diversas áreas da ciência ao redor de todo globo terrestre. Com ele, reduzimos a mortalidade infantil em 70%, fomos referência no combate ao HIV, aumentamos a expectativa de vida da população brasileira em mais de 10 anos e fizemos tudo isso com um orçamento que nunca passou de 7% do orçamento total da união (ref-1, ref-5, ref-6,ref-7).

O SUS é, sem sombra de dúvidas, o maior patrimônio social do povo brasileiro (ref-8).

Para você ter uma ideia, na maior potência econômica mundial atual, os Estados Unidos da América, mesmo que a maioria esmagadora do dinheiro investido em tecnologias de saúde venha de iniciativas públicas, a população do país não tem acesso gratuito à saúde, precisando desembolsar dinheiro próprio para planos de saúde, para co-pagamento de intervenções em saúde ou mesmo pagando diretamente aos hospitais. E estamos falando de valores em torno de 2 mil reais pela ambulância, 3 mil reais por consulta e até 70 mil reais por uma semana de internação em épocas de COVID-19. Valores que já levaram dois terços dos americanos à falência por gastos com saúde e um milhão de pessoas a viajar por ano para fora do país para ser atendido em países vizinhos (ref-9, ref-10).

Mas então, por que vemos tantos problemas no SUS?

Sucateamento e outros problemas no SUS

Torna-se até redundante, simples demais, mas nunca deixa de ser revoltante constatar que a saúde pública, o serviço público como um todo e, desta forma, todo o povo brasileiro, vêm enfrentando o mesmo problema, de mesma natureza, há mais de um século: sucateamento e desvio de verbas públicas para iniciativas privadas (ref-1, ref-5,ref-6, ref-11).

Como mencionado antes, as IAPs, o INPS e o SINPAS tiveram seus fundos, ainda que coletados do povo com o objetivo de criação de benefícios, acesso à saúde e aposentadorias, desviados para construção de indústrias por todo país, obras faraônicas como a transamazônica e a ponte Rio-Niterói e até mesmo a construção de centros de saúde que seriam administrados por empresas privadas. O poder público arca com o ônus e cede o bônus à iniciativa privada (ref-1).

Atualmente, cerca de 40% da verba do Ministério da Saúde é repassada a empresas privadas da área da saúde e usuários do sistema privado de saúde nas formas de restituição de imposto de renda, isenção de imposto à pessoas jurídicas, indústrias farmacêutica e química e hospitais de elite, mas na hora dos planos fazerem o mesmo e repassarem os custos que o SUS teve com usuários do sistema de saúde privada, eles simplesmente “esquecem e tá tudo bem” (ref-6).

Além disso, instituições filantrópicas, como o Hospital Albert Einstein, Hospital Sírio-Libanês, Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Hospital do Coração e Hospital Moinhos de Vento, que possuem isenção de impostos justamente por serem instituições filantrópicas e, para se manter no programa e manter essa isenção, precisam ceder até 60% dos leitos de UTI quando exigido pelo estado, simplesmente contornam essa exigência e não oferecem os leitos. Só com o PROADI-SUS, sim, do governo Lula, foram transferidos mais de 4 bilhões de reais do SUS para o G5 dos hospitais de elite brasileiros em troca de transferência de tecnologias para o SUS que, pasmem, poderiam ser feitas através de palestras e oficinas (ref-6).

Isso significa que você pode ter pago pela UTI aérea do Kleber Ferreira de Menezes, pelas cirurgias estéticas da Angela Bismarchi e até pela prótese peniana do Alexandre Frota (ref-6).

E como se não bastasse tudo isso, o sucateamento, ou seja, o subfinanciamento intencional do SUS ainda torna os serviços oferecidos precários, garantindo que a iniciativa privada tenha que fazer muito pouco para oferecer um serviço melhor (e ainda o faz com dinheiro público) e, finalmente, dando argumentos falaciosos para a cartada final: a privatização de empresas estatais bilionárias, a preço de farinha de trigo, para iniciativas privadas (ref-1, ref-5, ref-6, ref-7, ref-11, ref-12).

E se você pensa que vai fugir desta armadilha com um plano de saúde…

Através dos Planos Coletivos por Adesão, dos Planos de Saúde Populares e de acordos com a ANS, administradoras de benefícios podem aumentar deliberadamente os valores de planos, excluir dos planos pacientes que gerem gastos em excesso como os idosos e completar o ciclo de roubo descarado do dinheiro público usando o imposto que você paga para manter os hospitais, empurrando pacientes custosos para o SUS e prestando serviço apenas a pacientes ricos, jovens e saudáveis. E mais: em 2018, só a renúncia fiscal concedida a planos de saúde alcançou um quarto do valor investido no SUS no mesmo período (ref-5, ref-6)!

Tá, mas isso não era um texto sobre COVID-19 e as medidas do governo contra a pandemia?

COVID: O plano para o rebanho

Primeiro de tudo: eu nunca usei a expressão “medidas contra a pandemia”.

É importante ressaltar que o governo federal brasileiro teve tempo de sobra para se preparar para enfrentar a pandemia de COVID-19 e conta com um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo, referência em vigilância sanitária, contenção de epidemias e vacinação mesmo com todo o desvio de verbas para a iniciativa privada e subfinanciamento orquestrado pelos governos brasileiros (ref-1, ref-5, ref-6, ref-7, ref-8, ref-9, ref-10, ref-11, ref-12, ref-13).

Dito isso, afirmo que quem disse que o governo brasileiro nada fez diante da COVID-19 está desinformado ou mentindo. Mas talvez fosse melhor que não tivesse feito nada mesmo.

As ações executadas pelo governo federal foram acompanhadas, reunidas e analisadas pelo Boletim Direitos na Pandemia, como mostra a graduada, mestra, doutora, pós-doutora e livre docente em Direito e especialista em Saúde Global, Desy Ventura, trabalho de destaque nesta matéria que escrevo (ref-13, ref-14, ref-15).

O governo federal, diante da pandemia de COVID-19 opta por usar como estratégia a imunidade de rebanho por contágio, o que, por definição, consiste em não fazer absolutamente nada e deixar que as pessoas peguem a doença. Algumas morrem, outras superam com sequelas, até que, talvez, eventualmente, uma parcela suficiente da população tenha anticorpos para barrar o vírus, o que não é garantido que aconteça por vários motivos que você pode conferir no meu texto COVID: “Ninguém é obrigado a nada” (ref-13, ref-14, ref-15).

Mas o governo fez bem mais do que nada.

Em seguida: dá permissão aos estados decidirem o que são serviços essenciais, amplia a categoria do que são serviços essenciais através de decretos, veta leis de obrigatoriedade de uso de máscaras, veta lei que obrigava estabelecimentos a afixar cartazes com orientação sobre como usar as máscaras e sobre a quantidade máxima de pessoas no estabelecimento, veta leis que garantiam a informação às aldeias indígenas, na língua nativa, sobre a pandemia, veta leis que garantiam acesso à internet para que os indígenas não precisassem se expor fora das aldeias para obter informação e finalmente veta leis que garantiam auxílio às famílias de profissionais da saúde que viessem a falecer no combate à pandemia (ref-13, ref-14, ref-15).

O governo federal também causou a obstrução da atuação dos estados através de: retenção de recursos, atraso de repasses, falta de insumos, descoordenação de compras, recusa de compras de vacinas, ataques diretos a governadores e prefeitos com ameaças de guerra, incitação de invasão a hospitais, operações policiais contra membros de secretarias e governadores e ação judicial contra estados que atuassem com estratégias aproximadas das medidas sanitárias sugeridas pela OMS e comunidade científica (ref-13, ref-14, ref-15).

Além disso, o governo federal brasileiro ainda: usou discursos políticos, econômicos, morais, ideológicos e religiosos CONTRA medidas sanitárias adotadas por todo globo terrestre, promoveu descrença nas autoridades sanitárias e científicas, promoveu ativismo político contra governadores e prefeitos através de milícias digitais, incitou empresários a pressionar estados a evitar as medidas sanitárias sugeridas pela OMS como o Lockdown e demitiu dois ministros da saúde até encontrar um ministro sem qualquer conhecimento técnico sobre ciências da saúde ou sobre o SUS para assinar todas essas medidas descabidas e mandar alterar bulas de remédio (ref-6, ref-13, ref-14, ref-15).

Ufa! Pra quem é acusado de não fazer nada, até que me cansaram de tanta coisa pra escrever.

G E N O C I D A ?

Mas e a tão famosa acusação de genocídio tem cabimento?

Ainda segundo a especialista Deisy Ventura, as medidas adotadas pelo governo Bolsonaro não só podem como devem e estão sendo denunciadas de diversas formas por diversos crimes. Há crimes passíveis de reparação através de processos judiciais abertos por civis, crimes contra a saúde pública, crimes de responsabilidade que atentam contra os direitos humanos (mas os vários pedidos de impeachment são negados ou engavetados por aliados do presidente), etc. As atitudes do governante do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, são consideradas crimes contra a humanidade tanto no Brasil quanto no Tribunal Internacional definido no Estatuto de Roma por práticas de atos desumanos que causem dano à saúde física e mental e incitação e manipulação de massas (ref-13, ref-16, ref-17, ref-18).

Tá, mas posso chamar ele de genocida?

A discussão sobre genocídio surge com o genocídio armênio e a lei que tipifica tanto genocídio como crimes contra humanidade no Tribunal Internacional, assim como a lei brasileira que prevê genocídio, abrem sim a possibilidade de discussão sobre genocídio por parte das atitudes do governo Bolsonaro, caso seja previsto que as ações possuem impacto especial em diversas etnias, como as indígenas e as populações periféricas afro-brasileiras (ref-13, ref-16, ref-17, ref-18).

Por que?

É difícil acreditar que Bolsonaro tenha tomado todas essas atitudes acreditando que elas eram a melhor forma de se lidar com a pandemia e eu falo bastante sobre isso no texto que já mencionei COVID: “Ninguém é obrigado a nada”. Além disso, fica mais difícil acreditar que alguém honesto, de posse de um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo, referência em vigilância sanitária e contenção de epidemias opta-se, simplesmente, por incentivar a população a se expor ao vírus e adquirir imunidade de rebanho por contágio (ref-1, ref-5, ref-6, ref-7, ref-8, ref-9, ref-10, ref-11, ref-12, ref-13).

Há evidências claras de atitudes higienistas, corruptas e talvez oportunismo genocida, mas vimos que a história da saúde pública no Brasil tem um personagem omnipresente: o sucateamento.

Como se não bastasse as atrocidades realizadas pelo governo até aqui, há quem suspeite de que toda esta tragédia sirva, ainda, como plataforma política para mais privatização, com a desculpa que o SUS não teve capacidade de lidar com uma crise e argumentando que a solução para a saúde no Brasil seria privatizar o atendimento à saúde e isso nós temos a obrigação de impedir que aconteça.

Conclusão

O Brasil é um dos países mais bem preparados e criou expectativas em todo o mundo sobre como iria lidar com a pandemia de COVID-19 e as apostas eram que iríamos lidar com o problema de letra, mesmo que o nosso amado SUS seja constantemente subfinanciado, atacado e tenha recursos desviados para a iniciativa privada que, aliás, teve um desfecho patético na lida com a pandemia.

Entretanto, o governo de Jair Messias Bolsonaro não apenas escolheu cruzar os próprios braços contra a pandemia, mas decidiu cruzar os braços de todos os demais, ameaçou, incitou violência, debochou das vítimas e abusou de seu poder executivo e de seus seguidores fiéis para transformar o cenário brasileiro em uma tragédia sem precedentes, caótica, privando as pessoas de informação, disseminando mentiras, gerando mortes desnecessárias, colapso sanitário e funerário e se responsabilizando por um número que já alcança um terço de todas as mortes por COVID-19 no mundo.

Parafraseando Deisy Ventura, não podemos permitir que esse tipo de atitude passe impune ou estaremos legitimando-a para que governantes no futuro façam o mesmo tipo de escolha. O presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, deve sim ser denunciado, investigado e condenado por crimes de responsabilidade, crimes contra a humanidade e, até quem sabe, genocídio.

O responsável pela tragédia brasileira que, através do negacionismo, deixará marcas que transcendem até a desesperadora marca de 300 000 mortes por COVID-19 tem nome e sobrenome: Jair Messias Bolsonaro.

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Agradecimento aos Apoiadores do tipo Financiadores no apoia.se/cristianmenna:

Laura Nunes, Noctuam.

Referências

Referência 1: História da Saúde Pública no Brasil
Referência 2: Histórias do Brasil: Revolta da vacina
Referência 3: Revolta da vacina: Nerdologia
Referência 4: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
Referência 5: Greg News Planos de Saúde
Referência 6: Greg News Desvio na Saúde
Referência 7: Dráuzio Varella — Sistema de saúde no Brasil
Referência 8: Dráuzio Varella — O Sistema #2 — Precisa de médicos
Referência 9: O Paradoxo dos EUA e o SUS
Referência 10: Átila Iamarino — Força SUS! Ciência e paciência com Dráuzio Varella
Referência 11: Tese Onze: Mitos sobre público x privado
Referência 12: Dráuzio Varella — O Sistema #3 — O SUS
Referência 13: Átila Iamarino: Quem é o responsável pela pandemia? Com Deisy Ventura
Referência 14: Página dos Boletins de direito na pandemia
Referência 15: Boletim de direitos na pandemia no 10
Referência 16: Lei no 2889 de 1 de Outubro de 1956
Referência 17: International Criminal Court
Referência 18: Rome Statute of International Criminal Court

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Cristian Menna

Escritor (e fisioterapeuta) que desenha e faz política.