Não feche os olhos antes de assistir Florbela Espanca do Grupo de Teatro O Dromedário Loquaz

Cristian Menna
4 min readMar 22, 2023

Você facilmente encontrará Brecht, provavelmente sentirá um apego à memória tão presente em Kantor e, quem sabe, até reconheça semelhanças com Nelson Rodrigues, mas, aconteça o que acontecer, não feche os olhos até que não reste nada além de Florbela Espanca.

Atriz Diana Adada Padilha no papel de Florbela com chapéu, casaco e livro na mão, discursando de forma visceral.

Com dramaturgia e direção da produtora cultural, diretora teatral e atriz Sulanger Bavaresco e no elenco a diretora, figurinista e atriz Diana Adada Padilha, Florbela Espanca, do Grupo de Teatro O Dromedário Loquaz, acorda o espectro da poetisa portuguesa e, junto dele, defende sua honra e obra, oferecendo uma resposta, ainda que póstuma, aos seus algozes da Igreja Católica e da Ditadura Salazarista.

O Grupo de Teatro O Dromedário Loquaz surge em 1981 com a intenção, à época, de montar a peça Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht, o que acaba não acontecendo, mas dá início a uma história de resistência e reinvenção de mais de 40 anos.

À frente do grupo está hoje Sulanger Bavaresco, nascida em Bom Sucesso (SC), que, com extenso currículo, é responsável também pela dramaturgia e direção de Florbela Espanca que conta com uma única atriz no palco, a florianopolitana Diana Adada Padilha, diretora, atriz e figurinista, cuja história com o Dromedário começou há quase 20 anos atrás, e que, em 2016, fundou o Núcleo Pé e Poesia, onde atua e dirige espetáculos e performances focados na poesia.

(…) Dona morte dos dedos de veludo, fecha-me os olhos que já viram tudo, prende-me as asas que voaram tanto…

E, falando em poesia, Florbela d’Alma da Conceição Espanca, portuguesa de Vila Viçosa (Matosinhos), filha de Antónia da Conceição Lobo e filha “bastarda” de João Maria Espanca, cuja esposa Mariana do Carmo Inglesa Toscano, infértil, aceitou que aquele tivesse filhos com aquela, foi poetisa e uma dessas mulheres a quem uma sociedade patriarcal e misógina como a nossa reserva apenas a hostilidade, o descrédito e busca apagar da história, quase sempre por medo e quase sempre sem sucesso.

Com Florbela Espanca não foi diferente.

Os primeiros poemas de Florbela datam de seus nove ou dez anos de idade, foi uma das primeiras mulheres a frequentar um curso liceal em Portugal, cursou Letras, iniciou formação em Direito, escreveu para revistas, casou-se três vezes. Em vida, Florbela exigiu ocupar os espaços que lhe eram direito, escreveu sobre a feminilidade, sobre o erotismo e sobre a morte. Pela Igreja, foi considerada “mulher imoral”, pelo Estado, “mulher inconstitucional” e seus livros seriam proibidos na ditadura Salazarista sob a alegação de que poderiam “deformar a alma das jovens leitoras”.

Mas você veio aqui querendo saber da peça, certo?

Uma mesinha discreta, malas e um cabideiro, dispostos como se tivessem sido, há muito, parte da vida de alguém, mas que agora estão esquecidos, tomados pelo pó, começam a ganhar movimento, vida e cor quando o espectro de Florbela Espanca surge diante de nós para, mais uma vez, contar sua história. A poetisa surge como um fantasma, recita seus versos, tira o véu branco, aos poucos, devolve vida aos objetos da sala já esquecida: retira bebida das malas, manuscritos, monta o cabideiro, veste-se, bebe, fuma, conta-nos sua história, viaja, enfrenta mais uma vez seus demônios, relembra mais uma vez seu desejo de viver e sua coragem de morrer.

Com a ajuda e o trabalho maravilhoso de Diana que, muitas vezes, em um formato Brechtiano, fala-nos diretamente, Florbela conta sobre a condição de seu nascimento, do o julgamento da sociedade sobre seus modos, sobre as acusações de plágio, as difamações envolvendo ela e seu irmão Apeles e toda sorte de estratégias praticadas e perpetradas por uma sociedade misógina e patriarcal que só tem a oferecer a mulheres como Espanca, a hostilidade, o descrédito e a tentativa desesperada de esquecimento.

Florbela também fala das incontáveis portas fechadas diante de suas antologias de poemas que só foram finalmente publicadas com ajuda de seu pai, mas cujas tiragens esgotaram rapidamente. E destaco essa parte, pois não cabe a mim compreender, se não a partir da empatia e da lógica, o que sofre uma mulher em uma sociedade como a nossa, mas, como escritor, quero acreditar que, para além da versatilidade artística com rompantes admiráveis de emoção de Diana e da maravilhosa mistura de história, poema e drama de Sulanger na direção, a própria Florbela, através de sua memória, de sua corajosa e esperançosa melancolia, naquela noite, olhou fundo nos meus olhos de colega escritor e disse que eu seguisse escrevendo e seguisse insistindo, até que fosse chegada a hora de se fecharem os olhos e prenderem as asas.

Como quem do pó veio e ao pó retorna, Florbela termina sua breve estadia no mundo dos vivos devolvendo todos os objetos ao seu lugar, envolvendo-se de novo em seu véu e recitando seu famoso poema À Morte. Em verdade, devolvendo quase todos os objetos, pois, no cabideiro ainda montado, ficaram seus chapéus, seus casacos, saia e, claro, sua presença, um pedacinho de Florbela Espanca que agora compõe a alma de todos que compartilharam a manifestação espectral daquela noite.

Se você ficou interessado em assistir a peça, siga a página do Grupo no Instagram para saber de sua agenda e lembre-se de não fechar os olhos até que não reste nada além de Florbela Espanca!

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Cristian Menna

Escritor (e fisioterapeuta) que desenha e faz política.